Na era da informação, saber quem detém os dados — e o que faz com eles — é uma questão de cidadania. Transparência não pode parar na planilha contábil.
Artigo de Marcos Sunye, reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é professor titular do Departamento de Informática (Dinf-UFPR) e fundador do Centro de Computação Científica e Software Livre (C3SL). Para acessar a versão editada publicada na Folha de S.Paulo, na edição de 27 de maio de 2025, clique aqui.

A transparência virou um valor assimétrico no Brasil. Enquanto o Estado é compelido, por força da Lei de Acesso à Informação (LAI), a abrir seus dados ao escrutínio público, empresas privadas seguem livres para acumular, explorar e compartilhar dados pessoais em sigilo. Mais do que isso: a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que deveria proteger o cidadão, passou a ser usada como argumento para restringir o acesso à informação pública. O instrumento pensado para resguardar o indivíduo foi apropriado para blindar instituições.
A apropriação da LGPD como escudo contra a transparência não se limita ao setor público. No setor privado, ela tem servido como biombo para ocultar a extensão e o uso dos dados que as empresas acumulam sobre seus clientes, usuários ou mesmo visitantes ocasionais de sites e aplicativos. O argumento da proteção da privacidade, embora legítimo, tem sido desvirtuado para justificar uma zona cinzenta onde circulam informações de alto valor econômico, que, ocultadas, acabam inacessíveis ao controle social.
Na economia contemporânea, dados não são apenas registros técnicos: são insumos estratégicos. Por meio deles, empresas mapeiam padrões de consumo, inferem comportamentos futuros, segmentam públicos com precisão e direcionam ofertas com eficiência quase cirúrgica. Quanto mais detalhada, granular e temporalmente rica for uma base de dados, maior seu valor de mercado. E, ao contrário do que ocorre com ativos tangíveis, essas bases não constam nos balanços contábeis, nem estão sujeitas a qualquer tipo de fiscalização pública sobre sua formação, manipulação ou troca.
Essa lógica nos leva a uma analogia inevitável. Quando o petróleo passou a mover economias, foi regulado, com exigências de transparência sobre reservas, métodos de extração e impactos ambientais. Quando a eletricidade se tornou essencial para a vida urbana, foi regulada. Quando a água passou a ser mercadoria escassa, foi regulada. Os dados seguiram caminho inverso: tornaram-se o novo recurso fundamental da era digital, sem que a sociedade sequer saiba como — ou por quem — estão sendo explorados. O que está em jogo, portanto, não é apenas a privacidade individual, mas a opacidade institucionalizada de um setor cuja matéria-prima é invisível aos olhos da sociedade, embora flagrantemente lucrativa.
Se dados são ativos estratégicos, cuja posse e uso definem vantagens competitivas e moldam relações de poder, faz sentido que permaneçam em sigilo absoluto? Assim como exigimos que empresas divulguem balanços financeiros, é legítimo discutir a criação de um mecanismo análogo para seus ativos informacionais. Não se trata de revelar dados pessoais, mas de tornar pública a estrutura geral dos bancos de dados mantidos por companhias que coletam, armazenam ou comercializam informações em larga escala.
Pedir um “balanço de dados” não é nenhuma fantasia regulatória. Empresas de capital aberto, no Brasil e no mundo, já são obrigadas a publicar, periodicamente, seus demonstrativos contábeis — incluindo receitas, dívidas, ativos, passivos e movimentações de caixa. Se já exigimos transparência sobre o capital financeiro, por que não estender esse princípio ao capital informacional? O que está em jogo é o direito coletivo de compreender as estruturas que sustentam as decisões algorítmicas que afetam comportamentos, mercados e eleições.
Uma proposta inicial seria obrigar tais empresas a divulgar, periodicamente, um “balanço de dados”: número total de registros, tipos de dado retidos, período médio de retenção, fontes de coleta, o “dicionário de dados” utilizado — isto é, os campos e categorias existentes em sua base — e a lista de empresas parceiras com quem compartilham esses dados. A privacidade individual estaria garantida, mas o controle social finalmente seria possível. Esse modelo contribuiria para inaugurar um regime de accountability algorítmica — no qual estruturas de decisão automatizadas passam a ser compreensíveis, auditáveis e socialmente fiscalizáveis.
Essa transparência mínima abriria caminho para um debate mais amplo: os termos de compartilhamento de dados entre empresas. Hoje, essas relações envolvem transferência de valor implícita, sem qualquer regulação ou visibilidade pública. Ao contrário do que ocorre com fusões, aquisições ou contratos societários, a circulação de dados no setor privado opera em uma zona cinzenta, silenciosa e invisível, apesar de ser central para a economia digital.
A regulação da informação precisa alcançar o século XXI. Se o dado é a nova matéria-prima da economia digital, sua circulação não pode seguir intocada por mecanismos mínimos de transparência. A sociedade tem o direito de saber quem sabe o quê sobre ela. O que hoje está em jogo já não é apenas a proteção da privacidade individual, mas o equilíbrio de forças em uma era em que o poder informacional é o que mais pesa.
A pergunta que resta é simples e urgente: por que aceitamos tão passivamente viver às cegas num mundo que tudo vê? É hora de exigirmos um novo pacto de transparência digital, não apenas do Poder Público, mas também das corporações que transformaram nossas vidas em dados. A cidadania do século XXI passa, necessariamente, pelo direito de conhecer quem nos conhece.